
Guest Artist | José Carlos Duarte
José Carlos Duarte (Castelo Branco, 1971), aka José Júpiter (Lisbon, 2008-2016), lives and works in Lisbon. Graduated in Computer Engineering (FCT-UNL) and with a postgraduate degree in Photography, Design and Contemporary Art (Atelier de Lisboa, 2011-12), he works mainly in the area of “Information Technologies”. As a photographer, he collaborates regularly with the mala voadora company and the choreographers João dos Santos Martins and Tiago Cadete. He was a photography teacher and has been exhibiting his authorial work occasionally since 2009
Imagens: cortesia do autor
mala voadora: O dispositivo da imagem
FILIPE FIGUEIREDO | PAULA MAGALHÃES
(texto publicado na revista Sinais de Cena, nº 3, II série, Lisboa, Orfeu Negro, pp. 224-242)
Quinze anos após o momento fundador (2003), Jorge Andrade e José Capela, a dupla que assegura a direcção artística da mala voadora, continuam a aceitar a condenação “imposta” pela escolha do título de um conto de Anderson como designação identificativa. No conto, o protagonista acaba condenado a contar histórias para viver. No caminho artístico que partilham, Jorge Andrade e José Capela defendem que é possível contar histórias a partir de quase tudo, seja um texto, uma ideia ou um simples objecto.
Sem identidade delineada, nem modelos que a ajudem a definir, o colectivo recusa uma metodologia pré-determinada, em benefício da multiplicidade de processos de criação, na senda de uma ideia eternamente indefinida de teatro ou de uma reformulação/desconstrução permanente dessa ideia. Tem sido essa a constante na trajectória da mala voadora, desde os primeiros passos, percorridos em conjunto com diferentes encenadores, até aos projectos mais recentes. Neste percurso, foi determinante a contaminação do devising theatre, da companhia Third Angel, que permitiu a reconfiguração da prática teatral do colectivo “como espaço aberto à reinvenção dos métodos e à diversidade dos recursos expressivos” (Martins, 2017: 125).
É neste contexto que a relação entre o actor e encenador Jorge Andrade e o arquitecto e cenógrafo José Capela assume particular relevo, no modo como as opções cenográficas são responsáveis por reforçar e potenciar as leituras dramatúrgicas. Aqui, a imagem, entendida como dispositivo, afirma-se como importante ferramenta enquanto estratégia de exploração das possibilidades estéticas e discursivas em torno da ideia de teatro. As possibilidades são múltiplas, assim como os recursos:
– Através da integração da imagem do exterior na construção do espectáculo, como em casa & jardim (2012), em que a fachada do Centro Cultural de Belém (onde o espectáculo era apresentado) invadia o espaço cénico, duplicando a dimensão da movimentação das oito personagens entre o interior e o exterior de uma casa;
– Através do exercício de mise-en-abyme como artifício de exploração da metateatralidade, como em Pirandello (2015) – que opera um jogo constante entre o espaço cénico e a reprodução desse espaço enquanto subterfúgio cenográfico e dramatúrgico – ou Hamlet (2014) – em que a multiplicação no palco de imagens da sala onde o espectáculo decorre, potencia e acentua a ideia primordial da encenação em torno do fazer de conta;
– Através da tensão entre a desconstrução do artifício da representação e o jogo do simulacro e da ilusão, como em protocolo (2014), em que actores e público se vêm constantemente reflectidos no espelho que ocupa o fundo do palco;
– Através da manipulação da imagem (fixa ou em movimento) para a construção de uma narrativa, como em Moçambique (2016), em que imagens documentais são ficcionadas de um modo que não visava a verdade;
– Através da confrontação da imagem com a própria cena, como em o duplo (2009), em que sucessivas sequências de imagens retiradas de filmes são apresentadas perante a imobilidade de um actor e uma banda sonora interpretada ao vivo por outros dois actores (mais recuados na cena);
– Ou simplesmente através da dimensão plástica e visual resultante das opções cenográficas e de iluminação e que as imagens de cena cristalizam, como em memorabilia (2011) ou em Wilde (2013).
Tendo o jogo como mote, não permanente mas persistente, a imagem – fixa, em movimento ou reproduzida enquanto elemento integrante do espaço cénico – assume-se como instrumento de construção, desconstrução, reconfiguração, fruição ou mesmo destruição desse exercício constante que é a forma como a mala voadora entende o fazer teatral (uma incessante procura) e insiste em contar as “suas “ histórias.
O trabalho de José Carlos Duarte, o fotógrafo não cativo, mas suficientemente constante para deixar patente a sua marca, constitui, por isso, o elemento de fecho, o corolário de uma máquina teatral ardilosa. As suas imagens ora insistem em convocar o tão discutido efeito de real potenciando a tensão entre documento e ficção, ora introduzem uma evidente perturbação da percepção do espaço e da acção. Entre um modo e outro, o simulacro instala-se como uma poiesis que faz imergir o observador em exercícios de mise-en-abyme ou de faz de conta, tão caros à dramaturgia. Seja nos casos em que as suas imagens invadem o espaço cénico, seja noutros em que contribuem para a fixação de uma memória do evento performativo, as criações visuais de José Carlos Duarte têm tido a capacidade de completar o discurso cenográfico de José Capela e de o articular com o trabalho de Jorge Andrade. Não obstante o estatuto de complementaridade, parece certo que as imagens de José Carlos Duarte adquirem amiúde um carácter autonómico, proporcionando ao observador uma eterna possibilidade de (re)ver o espectáculo.
Este portefólio procura dar conta das estratégias discursivas de que as fotografias de José Carlos Duarte para a mala voadora são alvo, colocar em evidência o seu grau de vinculação à criação teatral e ao espectáculo, mas, ainda assim, assumir, também, o seu estatuto e o seu poder enquanto objectos visuais.