Projecto Teatral started its activity in 1994, being currently constituted by João Rodrigues, Maria Duarte, Helena Tavares, André Maranha and Gonçalo Ferreira de Almeida.
Since its origins, this theatre group has developed an artistic hybridism in which photography has a unique role. Many of his projects originate books that fit into a photo-book typology, of collective authorship. This gallery presents a selection of images related to the projects «teatro» (2003), estufa (2005-2007) and vazio do teatro (2009)
Images: courtesy Projecto Teatral
Do «teatro» ao vazio do teatro, com uma estufa pelo meio
Hibridismo entre performatividade e visualidade no Projecto Teatral
CLÁUDIA MADEIRA
O Projecto Teatral iniciou a sua atividade em 1994, sendo atualmente constituído por João Rodrigues, Maria Duarte, Helena Tavares, André Maranha e Gonçalo Ferreira de Almeida. Desde a sua origem este grupo de teatro tem desenvolvido um hibridismo artístico no qual a fotografia possui um papel singular. Muitos dos seus projetos originam livros enquadráveis numa tipologia de foto-livro, de autoria coletiva, com diferentes escalas e dimensões, compostos maioritariamente por imagens com uma estética apurada, a preto e branco e/ou a cores, em folhas coladas ou soltas. Neste último caso, reconstituem mesmo materialmente o formato da fotografia em papel.
Estes livros e as fotografias neles contidas ganham aqui a particularidade de se constituírem como parte inerente do processo cénico. Aí as imagens não se traduzem como uma mera ilustração do que acontece num palco perante o público. Não são somente registo nem acentuam um prioritário carácter documental ou de arquivo. Não se cingem à função de catalogação de momentos memoráveis, sequenciais ou fragmentários, inerentes à construção de uma obra. Pelo contrário, dão corpo a um livro que convoca em si mesmo diferentes ecos da relação com o trabalho artístico. Nessa condição, a fotografia revela-se ela própria como uma espécie de teatro primitivo, uma encenação, seguindo expressão de Roland Barthes (1980), mas também como um meta-teatro, um discurso sobre o teatro, ou melhor diríamos uma meta-teatralidade híbrida (Madeira 2021), no sentido em que esse discurso se estende a tudo o que está entre diferentes media e que pode afinal, nessa relação, ganhar uma condição de teatralidade, de relação performativa onde não há separação rígida entre obra e receptor na medida em que é este que, em última instância, aciona a cena, se atendermos à perspetiva de Michael Fried (1998). O teatro aqui, como “performatividade expandida”, no sentido defendido por Peggy Phelan (1993) e Erica Fischer-Lichte (2019)[1], é o que se dá a ver também, quer através de outros meios que não o teatro, por exemplo um filme, um objeto escultórico, uma fotografia, quer através do que faz parte do seu processo e que ecoa nestes foto-livros, reativando outras potenciais ligações à cena para o espectador.
Nas criações do Projecto Teatral há uma performatividade que integra momentos do processo, da instalação e da cena (com ou sem a presença do espectador), onde se incluem também estes livros. Abri-los num qualquer momento presente, ver as suas fotografias e textos, é aceder num continuado aqui e agora a estes projetos e ao que eles convocam.
Os três trabalhos escolhidos para esta mostra, identificados no título deste ensaio, representam um pequeno recorte de um conjunto de mais de três dezenas de obras que o Projecto Teatral tem desenvolvido desde a sua constituição. O critério de escolha teve por base uma dramaturgia singular a partir da noção de teatro que é agenciada entre performatividade e visualidade, de confluência e hibridismo mas, também, de confronto. Se a visualidade é parte da performatividade do teatro, aqui ela supera uma referencialidade linear para ganhar dimensões que oscilam entre o subliminar, o abismal e o espectral, num processo onde se questiona mesmo o próprio dispositivo do Teatro, enquanto lugar de onde se vê, theatrum, mas também enquanto género artístico e ainda ritual que se relaciona com a vida.
O Projecto Teatral construiu assim uma relação paradigmática com o campo do teatro, posicionando-se como uma interrogação em relação a ele, invocando múltiplas perguntas sobre os seus enquadramentos e desenquadramentos, sobre as suas ritualidades e liminaridades, sobre as suas evocações e materialidades. O teatro passa aqui de algo específico para algo expandido ou mesmo algo genérico, próprio do mesmo movimento que levou Thierry de Duve num ensaio intitulado “Das disciplinas: modernismo restrito e generalizado” (1999) a afirmar que a partir dos anos de 1960 uma nova “categoria” de arte irrompe: “arte em geral, ou arte em sentido alargado – que não estava mais contida nas disciplinas tradicionais”. Diríamos que, enquadrando-se nessa genealogia, o Projecto Teatral tanto é um teatro como arte em geral, como é, em sentido generalizado, uma arte como teatro.
Cria-se assim uma espécie de laboratório alquímico, um athanor, onde diversos autores e os seus textos, matérias e corpos, objetos e gestos, podem ser inscritos, ou tão só referenciados, através da fotografia e da composição própria destes livros. Mais que fotografia de teatro, a imagem é aqui, como já referimos, algo que nos permite reconstituir uma performatividade que fica contida nos livros, um arquivo fragmentado e aberto para novas reconstituições, para novas imagens.
É, neste sentido, que «teatro» (2003), estufa (2005-2007) e vazio do teatro (2009), surgem como peças distintas de um mesmo processo artístico onde está presente um exercício de experimentalismo a partir do teatro mas, também, além de uma noção específica de teatro. Superada a oposição binária entre especificidade e hibridismo, como afirmam autores como Jean Baetens and Heidi Peeters (2007), o que se evidencia é que os géneros não possuem uma ontologia estável mas antes mutável e proteiforme que as faz caminhar (especialmente através do diálogo que estabelecem com outros género) para a intermidialidade ou mesmo, assumindo a expressão de Florencia Garramunõ (2014), para o “inespecífico”.
Ao mesmo tempo, todos estes trabalhos parecem acompanhar, de algum modo, o processo de expansão de que a palavra Teatro foi objecto ao longo dos tempos, aderindo, para além da sua etimologia, a inúmeros conceitos derivados que questionam essa mesma especificidade, como sejam: Theatrum Mundis, Theatrum Botanicus, Theatrum Orbis Terrarum, Theatrum Chemicum, Theatrum Mortis.
Estas três obras reflectem-se umas nas outras, são “fragmentos” de uma ideia de teatro, que se constitui, num contexto de hibridismo e performatividade expandida, também nestes foto-livros. Estes não traduzem, pois, apenas uma memória ou arquivo, não são guias da obra, são parte efetiva, objectos hipertextuais desse teatro.
«teatro», um projecto de 2003, traduz bem o universo de hibridismo artístico emergente no início do novo milénio no contexto português (Madeira 2007). Enunciando uma espécie daquilo que podemos designar como uma dispensa do teatro por meio do teatro, nele resta apenas ao espectador o visionamento do processo (que demorou aproximadamente um ano) de construção, vivenciado pelo grupo, de um estrado-palco numa casa rural, com vista para a natureza, em São Vicente da Beira, na Beira Baixa. Esse processo é possibilitado ao espectador quer através da projeção de um filme em 16mm, quer através de um livro, de capa branca, onde se inscreve o título «teatro» e a identificação do grupo, ambos apresentados ao “espectador” no dia da estreia, no auditório do Goethe Institut, em Lisboa.
O filme apresenta elementos documentais do processo construtivo desse estrado-palco, sobre o qual se sobrepõe o som (sincronizado à mão e exterior à película), da leitura a duas vozes (uma masculina e uma feminina) de um texto socrático, e a presença do projecionista em palco; o livro (num formato aproximadamente A4) apresenta um texto introdutório, com algumas notas que identificam o local e data da ação e vinte fotografias impressas em papel, soltas, a preto e branco e também a cores.
Na memória de alguns espectadores pode ainda hoje ecoar o texto socrático, a ideia do filme, os ruídos da projecção ou a presença do actor/ projecionista em palco, mas a materialidade do livro permite presentificar essas potenciais memórias, dilatando-as e alterando-as continuamente: podemos abri-lo, folheá-lo ao acaso, desordenar a sequência original das fotografias em papel (que se apresentam soltas e sem numeração, sem uma matriz sequencial e documental), ou mesmo perder ou rasurar algumas dessas imagens, dando-lhe novos sentidos.
Neste projeto procurou-se assim uma subtração de tudo o que é Teatro e, ao mesmo tempo, expor o essencial do que é o dispositivo cénico canónico que permite o Teatro ― o palco, o estrado, um enquadramento, uma moldura.
estufa, projeto desenvolvido entre 2005 e 2007, tem por protagonista o próprio processo de metamorfose das plantas, não necessariamente procurando identificar a forma proteu inerente a essa transformação como pretendeu Goethe mas fazendo alusão a uma poética da criação que é iniciado pela construção de uma estufa, que é aqui também moldura, cenário e palco.
Este processo foi constituído em “seis andamentos”, sendo o primeiro dos quais, que mais adiante descreveremos, desenvolvido em privado e partilhado com o público exclusivamente através de um foto-livro, constituindo-se a fotografia não uma representação, mas uma apresentação da própria cena, do próprio “teatro”.
Os restantes “andamentos” coincidiram com a abertura e o fecho de portas desta obra, entre as 20h00 e as 23h00 de 22 de Setembro de 2005 a 19 de Outubro de 2006, que teve lugar numa casa de traça antiga localizada na Rua de Caetano Palha (a São Bento), nº 37, r/c, situada no centro de Lisboa.
O espectador recebe um foto-livro à entrada da casa; seguidamente, depois de atravessar uma sala na penumbra, com painéis de madeira pintados com imagens bucólicas de jardim (de uma anterior ocupação), entra para um espaço exterior, um quintal, onde foi construída a “estufa”, uma estrutura de vidro, que ocupa praticamente todo o perímetro do espaço.
Entre o momento de abertura e de fecho desta obra ao público duas epígrafes do livro Jacques. Le Fataliste, de Diderot, são dispostas sobre a lamela de um microscópio instalado nesse espaço exterior: “Vous y étiez avant d’y entrer” e “et vous y serez encore quand vous en sortirez”[2]. Ao entrar nesse espaço exterior o espectador vê, para além da estufa, uma rampa escavada na terra, com um desnível que parece ir dar às profundezas da terra, numa espécie de imaginário de Júlio Verne. No entanto, um muro interrompe essa possibilidade. A rampa não vai dar a lado nenhum, apesar de o reflexo da luz no vidro da estrutura da estufa criar essa ilusão através de um efeito de espelho. Ao redor dessa rampa o “teatro” que é dado a ver ao espectador não corresponde às imagens presentes nos foto-livros que recebeu à entrada da casa. Da imagem fotográfica das plantas que compõem este teatro-estufa pressente-se apenas, através dos vasos vazios caoticamente deixados num dos cantos do espaço, uma remota presença.
O teatro aqui surge desse trânsito entre presença e ausência, que é desenvolvido entre o que está (ou não está) instalado no espaço e as fotografias presentes nos livros. É aí, nesse lugar de memória, que os espectadores podem descobrir o exercício performativo de uma arte de jardinagem que teve lugar nesse espaço, agora invisível. Ganha-se no registo fotográfico, como refere Philipe Auslander no seu ensaio Performativity of Performance Documentation (2006), a evidência de que uma qualquer performance, “um teatro”, como foi convencionado pelos seus criadores, aconteceu ali.
Esse processo de jardinagem presente nos livros pode talvez lembrar a alguns dos espectadores um dos projetos de Bouvard e Pécuchet, personagens de um romance de Flaubert, quando estes, depois de encontrarem numa Biblioteca a obra de Boitard intitulada O Arquitecto de Jardins, se põem a experimentar a arte da jardinagem e chegam mesmo a construir um melancólico e romântico jardim. A referência a estes personagens é aliás parte do repertório do Projecto Teatral apresentada no espetáculo denominado precisamente Bouvard e Pécuchet, na Antiga Cantina do Museu Nacional de História Natural em 2004, onde os criadores se propunham começar o espetáculo na ação onde o romance de Flaubert se interrompia — Bouvard e Pécuchet sentados frente-a-frente em escrivaninhas para se dedicarem à arte da cópia.
Em estufa é, contudo, através do registo, permitido pelos foto-livros, que se pode aceder ao momento de “preparação” da dramaturgia da cena, uma espécie de bastidores da “ação teatral”; a que se junta depois o momento da presença do espectador no espaço que assiste a um conjunto de ações, diferenciadas consoante o dia e a hora.
O “primeiro andamento” do projeto, é registado no foto-livro de 18 de Fevereiro a 15 de Dezembro de 2005 e traduz, não só “uma intervenção num espaço, o selar in vitro de um volume de terra e ar de aproximadamente 230 m3, aquilo a que doravante nomearemos por estufa; e uma atividade algo nómada, na estreita periferia desse espaço, realizada num conjunto de pequenas tendas translúcidas de extrema fragilidade, onde foram sendo criados e zelosamente velados os primeiros rebentos, futuros inquilinos da nossa estufa”, como uma “espécie de ante-ato que consigna o espaço ou, digamos, a natureza secreta da cena que decorre no interior das tendas”, também chamadas aqui “estufins” (tal como em Bouvard e Pécuchet no romance de Flaubert).
O livro permite assim ao espectador presenciar, em diferido, a construção do cenário e as ações selecionadas deste primeiro momento de bastidores: de intervenção no espaço, limpeza, criação da estrutura da estufa; de seleção do repertório de plantas, que na maioria detém uma personificação: desde o tomate roma, à alface rainha-de-maio, ao espinafre nova-zelândia, ao pac choi, ao alho francês monstruoso, à aboborinha híbrida, ao funcho doce de florença, ao feijão tarot, à couve-flor gigante tardia de nápoles, à cebola de setúbal, à fava do algarve, ao nabo, às margaridas, às endívias; de transplante para a terra, para o cenário e desenvolvimento das ações, dos primeiros rebentos, das primeiras flores, dos primeiros frutos, da progressão do desenvolvimento das plantas, enfim, do desenvolvimento das cenas, ações, em palco.
O livro de 15 de Dezembro de 2005 a 21 de Março de 2006, correspondente ao “segundo andamento”, apresenta a instalação dos dispositivos de cena: iluminação e sistema de rega. Aqui o cenário é invernal, registrando-se a neblina, a humidade, as gotas de água.
O livro de 21 de Março a 21 de Junho de 2006, que configura o “terceiro andamento”, foca, através da iluminação, as formas e disposições das plantas, dos utensílios, das ferramentas, dos vasos ou da água.
O livro de 21 de Junho de 2006 a 19 de Outubro de 2006, “quarto e quinto andamento”, dá conta da passagem da estufa (desaparecem as plantas) para a construção da rampa. Verifica-se assim uma transformação no espaço, cujo sentido e significado fica em aberto, talvez a possamos interpretar como a estufa dando lugar à metáfora da sua memória.
Nesta obra, os espectadores contemplam este teatro de ações numa constante indefinição entre visibilidade e invisibilidade, entre teatro e não teatro. Esta indefinição levou mesmo a um “sexto andamento”, uma última imagem tumular da rampa coberta de cal. Uma metáfora da relação entre vida e morte presente na ideia de estufa, que também pode ser traduzida na resposta-protesto dos seus criadores à decisão do Instituto das Arte de lhes retirar o apoio por considerar que esta obra não traduzia a ideia de teatro. Num artigo de Cristina Morgato, intitulado “Fora de Cena”, no Jornal Expresso de 24 de Fevereiro de 2007, os criadores afirmavam sobre esta imagem final que se tratava agora “de um trabalho de silêncio, mais do que de palavras”, e perguntavam “porque é que a cena não é suficiente para definir a presença de teatro?”.
vazio do teatro é uma obra de 2009 apresentada no espaço Negócio da Galeria Zé dos Bois em Lisboa. Contraponto a um estrado-palco (em «teatro»), ou a uma rampa escavada na terra que se cobre de cal branca (em estufa), esta obra emerge a partir do chão, como um enorme volume de terra, um quadrado de 4,5 m composto de terra negra, talvez tumular, talvez mera presença poética para contemplar, sem enquadramento senão o da sua sustentação própria. O espectador/ o visitante, pode rodear esse volume de terra, tomar-lhe as várias perspetivas e invocar inúmeras associações possíveis.
Este vazio do teatro é matéria orgânica, terra sobre terra, recorte na terra, construção, criação e, ao mesmo tempo, desconstrução e recriação. Um ciclo da terra, uma contínua transformação que pode evocar a organicidade do teatro humano, entre vida e morte, presença e ausência, cheio e vazio, criação e destruição.
E, de novo, a obra é acompanhada por um livro (de dimensão aproximadamente A3-A2), que o visitante-espetador pode abrir durante ou depois da sua visita. Numa primeira fotografia, a cores, surgem fragmentos de matérias diferentes, sobrepostas: barro, texturas de tecidos, madeiras, uma régua, remetendo para um plano de ação a desenvolver. Na imagem seguinte vê-se um terreno (no meio da natureza) de onde vai ser escavada a terra para a construção desta obra. Volta-se a página e vê-se vários sacos pretos, no espaço da galeria que vai acolher a obra, contendo a terra para essa construção. Nas páginas seguintes, recuperam-se momentos do processo performativo, quer da ação dos criadores no espaço, os seus corpos e os seus gestos, o pormenor da mão que esculpe a terra, quer de perspectivas contrapostas sobre a obra final: o quadrado negro de terra transforma-se num aparente triângulo através da sombra projetada, enquanto na contracapa do livro surge a imagem de um entrançado composto por tiras de linho branco, de diferentes larguras, que configuram uma textura geométrica e o gesto, o movimento de uma mão que desenvolve esse processo de “tecelagem”, evocando uma ancestralidade ritual ligada ao ato de mumificação, ao ato de perservar algo a partir do efémero.
[1] Na sequência das noções de “escultura expandida” de Rosalind Krauss (1979), de “cinema expandido” de Gene Youngblood (1971) ou A. L. Rees et al (2011), de fotografia expandida de de Georges Baker (2005) ou ainda de “arte expandida”, que o artista George Maciunas colocou em diagrama, em 1966
[2] “Estáveis aqui antes de terdes entrado” e “aqui estareis ainda quando daqui sairdes”.