Texto: RAQUEL MONTEZ RAIMUNDO

A primeira edição dos Encontros PERPHOTO decorreu entre Fevereiro de 2020 e Fevereiro de 2021 e foi programada no âmbito de uma parceria entre o projecto de investigação PERPHOTO, o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e o Atelier de Lisboa – Centro de Artes Visuais. 
O ciclo acolheu apresentações de trabalhos de criação de cinco artistas diferentes que trabalham em áreas de confluência entre a imagem (em especial a fotografia) e as artes performativas. Os Encontros PERPHOTO foram dedicados às possibilidades performativas a partir de arquivos fotográficos de natureza diferentes, que assumem contornos distintos a partir do momento em que são reactivados num contexto performativo.
O ciclo estava inicialmente planeado decorrer ao longo do primeiro semestre de 2020. Devido às condições sanitárias apenas foi possível realizar a 1ª sessão, tendo sido necessário repensar e reagendar as outras em formato streaming, que decorreram a partir de Novembro de 2020. Cada sessão pôde ser acompanhada através da plataforma Zoom ou da transmissão em directo na página do Facebook do PERPHOTO. As sessões rondaram todas as 2h30 e contaram com a presença e participação de 30 a 60 pessoas cada, contemplando, após as respectivas apresentações e performances, momentos de conversa entre artista e público.

A sessão inaugural (14 de Fevereiro de 2020) aconteceu presencialmente no Atelier de Lisboa – Centro de Artes Visuais e contou com a participação do realizador Eduardo Breda. Os coordenadores do projecto PERPHOTO, Filipe Figueiredo e Cosimo Chiarelli, apresentaram o trabalho do autor, que também dispensou algumas palavras para falar sobre os seus documentários Boa Alma (2016) e Caos Danado (2018). Estes acompanham diferentes processos criativos de performances da Casa Conveniente / Zona Não Viajada e de Sara Barros Leitão, respectivamente. Depois disso, seguiu-se a projecção dos documentários do realizador. Primeiro exibiu-se Boa Alma, que, através da montagem de Breda nos permite aceder a ensaios que marcam um momento de transição da companhia, que mudou as suas instalações, nesse ano, do Cais do Sodré para Chelas. A partir de textos de Brecht e de Luís Mário Lopes, as actrizes confrontam ideias, através de exercícios e conversas em que questionam o processo criativo em que estão envolvidas, enquanto vão arrumando e melhorando o seu novo local. Seguiu-se o visionamento de Caos Danado, em que se assiste ao processo mais solitário de Sara Barros Leitão, que se debruça sobre o arquivo do Teatro Experimental do Porto para montar aquele que mais tarde seria Teoria das Três Idades. O material fílmico de Breda é simultaneamente um documento de teor documental, com a possibilidade de integrar vários arquivos, e de teor ficcional. É um documento de teor documental que fornece informação sobre o processo de trabalho da companhia lisboeta e da artista portuense; e, de teor ficcional, não só pela montagem a que é sujeito, mas também, no caso de Caos Danado, porque cria intencionalmente uma confusão entre realidade e ficção. Estes foram também alguns dos assuntos sobre os quais se falou nas conversas que ocorreram depois das projecções no Atelier de Lisboa. Estava assim lançado o mote para todo o ciclo.

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A 13 de Novembro, Ana Janeiro apresentou O arquivo está presente?. A performance tinha sido já anteriormente apresentada uma vez, presencialmente, no âmbito da tese de Doutoramento da artista, em Fotografia, pela Universidade de Westminster (Londres). Ana Janeiro explicou, antes mesmo da performance, os objectos e objectivos da sua investigação, alertando os espectadores para a sua importância no processo de pesquisa, e mostrando como o resultado da componente prática culminou numa exposição fotográfica. Na sua apresentação nos Encontros PERPHOTO, a artista recorreu à reprodução de um vídeo da performance apresentada anteriormente, ocupando-se in loco da leitura de algumas partes da sua tese. No registo vídeo é possível ver projectadas, uma de cada vez, fotografias da família de Ana Janeiro, nomeadamente das avós (materna e paterna). Simultaneamente, acompanhamos os encadeamentos de gestos que vão permitindo à performer reproduzir as poses das avós e os movimentos imaginados pela artista para dar continuidade àquelas poses. O discurso oral, de natureza teórica, visava problematizar a forma como as duas mulheres são representadas nas fotografias e discutindo a iconografia do Estado Novo (período de que datam as fotografias). Depois da performance, Ana Janeiro falou sobre o processo de criação, mas desta vez com um discurso focado em esclarecer de que maneira ele ocorreu e como é que ajudou a definir as fotografias como objecto final. Foram discutidas com o público questões relacionadas com a organização e trabalho feito a partir de arquivo, a mediação, a memória, a iconografia e o próprio arquivo, tendo sido alvo de interesse no debate, não só a performance, mas todo o trabalho de investigação de Ana Janeiro.

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No dia 4 de Dezembro de 2020, Tânia Dinis apresentou Imaginário familiar – linha de tempo, projecto inserido na série Arquivo de Família. No entanto, não foi só Tânia Dinis quem contribuiu para a performance, tendo contado com a participação activa de mais ou menos oito pessoas, convidadas a descrever e a «reactivar» ­– através da atribuição de novos significados ­– algumas imagens que lhes foram enviadas anteriormente pela artista em resposta a uma call feita especificamente para o Encontro. Utilizando mecanismos presentes em trabalhos anteriores, como os da sua instalação sobrepostos e do espectáculo Álbuns da Terra, a artista apropria-se de imagens, apresenta-as enquanto transparências e coloca-as em cima de uma mesa de luz, onde vai montando cenas recorrendo às fotografias, muitas vezes sobrepostas, e a material como papel celofane, lupas e filtros. À medida que as fotografias iam aparecendo, os participantes relatavam, oralmente, pequenos episódios, descreviam imagens, emoções, paisagens. Enquanto Tânia Dinis nos mostrava histórias, estes membros participantes contavam-nas. Disto decorreram associações e leituras diferentes das imagens, bem como alguns silêncios, preenchidos pela força da dimensão performativa da montagem a que Tânia Dinis submete as imagens. O arquivo fotográfico pode, não só ser gerador de discurso, mas também sobrepor-se ao texto, recusando uma tendência logocêntrica. Na conversa foram debatidas questões relacionadas com a apropriação de álbuns encontrados que, ainda assim, têm características familiares, afectivas e que têm a capacidade de convocar múltiplas memórias, histórias e ficções. 

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À semelhança de Tânia Dinis, na sessão seguinte, que ocorreu a dia 15 de Janeiro de 2021, Susana Paiva delineou uma apresentação para a qual contribuíram várias pessoas, nomeadamente, os fotógrafos e artistas Arlindo Pinto, Fernando Alves, Francisco Varela, Kátia Sá, Paula Arinto e Sofia Morais. Anatomia de uma imagem, o primeiro projecto de natureza performativa da fotógrafa, foi apresentado inicialmente no âmbito do Festival CITEMOR, em Agosto de 2019, tomando como objecto de trabalho o corpus de fotografia de cena da autora e a reflexão sobre o mesmo. Na adaptação concebida para a 4ª sessão dos Encontros PERPHOTO, a transição da experiência para o virtual fez com que as potencialidades da plataforma Zoom fossem amplamente exploradas. A sessão consistiu em várias performances a ocorrerem em salas simultâneas. Embora com tempos diferentes, cada um dos sete artistas tinha uma sala virtual dedicada (Susana Paiva ocupava a sala principal). Isto ofereceu uma experiência única a cada membro da audiência virtual, uma vez que concedia a oportunidade de escolha, podendo o público percorrer as diferentes salas, como lhe aprouvesse, à medida que elas iam abrindo. Coube a Susana Paiva, além de produzir a sua própria performance, gerir todo o dispositivo: abrir salas, fechá-las e notificar o público quando uma nova performance começasse. Todos os artistas propuseram abordagens ao lugar da imagem, através da sua relação com o texto, com o vídeo, com a palavra. Durante os momentos finais da sessão, quando a equipa artística e o público já se encontravam na sala principal conversou-se sobre a liberdade de escolha do espectador, sobre a mediação e sobre o dispositivo que fez com que cada espectador tivesse uma experiência singular. Ficou no ar a pergunta: como é que se arquiva uma proposta destas?

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A última sessão dos Encontros PERPHOTO ocorreu a 12 de Fevereiro. Ana Gandum apresentou aqui já está sumindo eu, uma performance que foi construída a partir da investigação de Doutoramento feita na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, centrada na migração de fotografias enquanto lembranças entre Portugal e Brasil. Para além da sua tese de Doutoramento, Ana Gandum foi autora de um livro e de uma instalação em torno dos mesmos objectos. A proposta performativa foi a de um dispositivo narrativo simultaneamente textual – interpretado oralmente e produzido na sessão através de um ficheiro pré-gravado – e visual, com o qual a artista se ocupa in loco. Enquanto a narrativa textual dava conta de episódios relacionados com as fotografias, imagens, livros, documentos e textos, estes objectos eram manipulados pela artista, auxiliando-se de uma lupa e de uma luva. A performance é marcada por uma aparente repetição. Ela foi dividida em duas partes, sendo a segunda uma nova versão da primeira, levando-nos numa renovada viagem, com uma base igual à da primeira, mas com nuances suficientes para que se considere outra. As histórias dos objectos e das pessoas a eles associados são recontadas pela mesma ordem cronológica, mas com novos dados visuais e textuais. Na mesa filmada onde estes objectos iam fluindo encontraram‑se também pastas de arquivos de negativos. Estes arquivos, tal como a luva de Ana Gandum, apontam recorrentemente para um contexto arquivístico, para o acto de arquivar e manusear arquivos. Tal como mencionado no momento de debate, o que Ana Gandum faz é animar, vivificar o seu trabalho de catalogação e arquivo. 

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Cada uma das propostas das artistas e do artista assumiram uma forma diferente, mas todas permitiram (e permitem) debater acerca da natureza instável do arquivo, assim como das inúmeras potencialidades de criação quando a performatividade é problematizada através de processos memoriais, que implicam manipulação, incorporação, apropriação e reactivação.